O Reino Unido na balança da Europa e da ordem internacional liberal

O Reino Unido na balança da Europa e da ordem internacional liberal

Há precisamente 120 anos tinha início a Guerra dos Bóeres, apontada como marco inicial do declínio do Império Britânico, meros dois anos após o Jubileu de Diamante da Rainha Vitória, que, por outro lado, simbolizou o apogeu da Grã-Bretanha.[1] Devemos sempre ser cautelosos com as analogias e lições da história, mas permitimo-nos assinalar que, da mesma forma que os britânicos começaram por subestimar os bóeres e acabaram por entrar numa guerra da qual só sairiam vencedores com elevadíssimos custos humanos, financeiros e políticos, também o Brexit evidencia como uma parte da elite política britânica subestimou a possibilidade de o Vote Leave vencer o referendo, e outra parte, os que fizeram campanha e votaram pela saída do Reino Unido da União Europeia, subestimou a facilidade e os custos do processo desta saída. Quer o Reino Unido e a União Europeia cheguem a acordo, quer o Reino Unido saia sem qualquer acordo, os custos financeiros e políticos serão muito significativos para ambas as partes.

Tem sido recorrentemente sublinhado por diversos observadores que muitos dos principais protagonistas do Brexit, em especial aqueles membros do Partido Conservador que ao longo dos anos foram pressionando David Cameron para a realização do referendo, são permeados por um sentimento de nostalgia pelo Império Britânico. Ainda que continue a ser considerado uma grande potência, de facto, o Reino Unido não ocupa na hierarquia das potências o lugar cimeiro de outrora, e certamente que entre as várias causas na origem do Brexit está, como as declarações de muitos partidários do Vote Leave demonstraram à saciedade, a aspiração de se projectar de forma mais assertiva na ordem internacional do que tem conseguido enquanto membro da União Europeia. Parece permanecer válida a declaração de Ernest Bevin, em 1947, de que “O Governo de Sua Majestade não aceita o entendimento de que deixamos de ser uma Grande Potência,”[2] sendo tentador encontrar nesta recusa e na nostalgia pelo Império variáveis determinantes que explicariam o Brexit – o que, aliás, está em linha com o espírito do tempo nas democracias liberais ocidentais, atravessadas por movimentos populistas e nacionalistas cujas aspirações de política externa foram bem resumidas num slogan isolacionista e unilateralista norte-americano recuperado por Donald Trump: “America First.” A estas variáveis acresce uma terceira, o descontentamento dos chamados desfavorecidos da globalização, uma das principais causas do surgimento de vários movimentos populistas contemporâneos, a par com o ressentimento cultural, duas teses analisadas por Pippa Norris e Ronald Inglehart.[3] Boa parte da classe trabalhadora clássica, tipicamente parte do eleitorado trabalhista britânico, votou a favor da saída por considerar ter sido prejudicada pela globalização neo-liberal em favor de determinadas classes sociais de outros países e um dos principais argumentos utilizados pela campanha Vote Leave foi a ameaça de uma crescente imigração que reforçaria a insegurança laboral.

Estamos, porém, em crer que as causas profundas do Brexit podem ser melhor compreendidas recorrendo a uma perspectiva histórica de longo prazo da política externa britânica no que concerne às relações com o continente europeu. Quem assista hoje ao episódio “The Writing on the Wall” da célebre série da BBC “Yes, Minister”, datado de 1980, não deixará de ficar surpreendido pelo vislumbre do que viria a ser a política externa britânica em relação à União Europeia. Começando por declarar que a Grã-Bretanha tem o mesmo objectivo de política externa há 500 anos, criar uma Europa desunida, Sir Humphrey Appleby, sem explicitar o papel de fiel da balança no equilíbrio de poder europeu desempenhado pela Inglaterra (mais tarde, pelo Reino Unido), alude-lhe, assinalando que, em diversos conflitos, os britânicos lutaram ao lado dos holandeses contra os espanhóis, dos alemães contra os franceses, dos franceses e italianos contra os alemães, e dos franceses contra os alemães e italianos, para justificar a entrada nas então Comunidades Europeias com o propósito de destruir o projecto de integração europeia a partir de dentro, intento que não lograram alcançar a partir de fora. Voltando à realidade, este objectivo terá estado na mente do General De Gaulle, que em 1963 vetou a entrada do Reino Unido nas Comunidades Europeias devido ao receio de que aquele fosse um cavalo de Troia norte-americano potencialmente destruidor de todo o projecto europeu.[4] Tratava-se de um receio fundado nos esforços britânicos de diluição do projecto do Mercado Comum, cujas bases foram lançadas pelo Tratado de Roma, assinado em 1957, no que seria uma simples organização de comércio livre entre todos os países da Europa Ocidental, para a qual tentaram persuadir os seis Estados fundadores das Comunidades Europeias. O insucesso destes esforços levaria o Reino Unido a liderar a criação da Associação Europeia de Comércio Livre, mais conhecida por EFTA (European Free Trade Association), estabelecida em 1960. Mas os êxitos do Mercado Comum, a tendência para a formação de grandes blocos económicos regionais, a crise económica que atravessava o Reino Unido e as dúvidas quanto à solidez da sua “relação especial” com os EUA levaram o governo de Sua Majestade a solicitar a adesão às Comunidades Europeias, que seria ainda vetada uma segunda vez, novamente por De Gaulle, em 1967, apenas se concretizando após a substituição deste por Georges Pompidou.[5]

Um analista das relações internacionais marcado pelo cepticismo e até pelo cinismo, não obstante o mencionado no parágrafo anterior, talvez dê razão a Sir Humphrey quanto ao objectivo britânico de entrar nas Comunidades Europeias, especialmente atendendo ao impacto, parcialmente imprevisto, que o Brexit terá no projecto de integração europeia. Esta é, porém, uma visão restritiva e exageradamente simplificadora da política externa britânica e do projecto, de natureza eminentemente pacífica, parcialmente responsável, em conjunto com os EUA e a Aliança Atlântica, por um período de paz relativa verdadeiramente excepcional na história do continente europeu nos últimos séculos. Ademais, na verdade, o principal objectivo da política externa britânica foi apenas o de preservar o equilíbrio entre as potências europeias, frustrando as aspirações hegemónicas de qualquer uma delas, o que significou uma política externa para a Europa essencialmente reactiva em que no equilíbrio de poder a Grã-Bretanha era o já mencionado fiel da balança nos conflitos que atravessavam o solo europeu.

A primeira potência a protagonizar esta política nem sequer foi a Inglaterra, mas a França do Cardeal Richelieu, inventor do conceito da raison d’État com que fundamentou o apoio francês aos protestantes que, durante a Guerra dos Trinta Anos, combateram o Sacro Império Romano-Germânico. No seguimento da Paz de Vestefália, emergiria gradualmente, nos séculos seguintes, o sistema de equilíbrio de poder no seio do qual a Inglaterra cumpriria o seu interesse nacional, impedir a hegemonia de uma única potência sobre a Europa, através de várias coligações em que, perante o expansionismo de uma das potências, se colocava ao lado dos mais fracos. Este papel era reflexo da sua realidade geopolítica, cuja sobrevivência ficaria ameaçada em face de qualquer império continental. Mas, segundo Henry Kissinger, a estratégia quanto à forma de prosseguir esta política, cujo arquitecto original foi Guilherme de Orange e que inicialmente até nem agradou à opinião pública britânica, marcadamente isolacionista, foi sendo disputada por whigs e tories num paralelo idêntico ao desacordo no seio dos EUA após as duas guerras mundiais. Os tories defendiam a intervenção em solo continental para repor o equilíbrio quando este estivesse ameaçado e a participação em alianças permanentes que influíssem de forma determinante na preservação da paz, enquanto os whigs, com uma perspectiva isolacionista, acreditavam que a Grã-Bretanha só deveria envolver-se quando estivesse efectivamente ameaçada por um ataque proveniente do continente.[6] Até mesmo o sistema de reuniões periódicas proposto por Lord Castlereagh no Congresso de Viena, após a derrota das aspirações hegemónicas de Napoleão Bonaparte, para a generalidade da opinião pública bem como para o governo britânico assemelhava-se demasiado a um governo europeu.[7]

Desta perspectiva, poder-se-á considerar a saída da União Europeia inserida numa longa linha isolacionista que atravessa a política externa britânica para a Europa há séculos e lhe permitiu frustrar quaisquer ameaças do continente à sua independência e manter um Império à escala global. É nisto que se fundamenta a visão dos partidários do Brexit de que este é a chave para o Reino Unido deixar de estar manietado por Bruxelas – ignorando deliberadamente as cláusulas de opt-out de que beneficia, que o mantêm à parte da moeda única e do Espaço Schengen –  e recuperar o controlo sobre os seus destinos assumindo maior relevância no plano internacional.

Acontece que isto ignora quatro realidades: primeiro, as principais grandes potências são substancialmente mais poderosas que o Reino Unido, que enquanto uma das principais vozes da União Europeia seria sempre capaz de projectar maior poder nas suas relações com elas do que fora do projecto de integração europeia. Segundo, uma política marcadamente isolacionista como o Brexit não só já teve impactos negativos na forma como outros Estados percepcionam o Reino Unido como terá impactos no futuro da NATO e das relações desta com a União Europeia, enfraquecerá o papel do Reino Unido no seio de outras organizações internacionais e poderá até ameaçar o seu assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, desde logo porque a sua legitimidade enquanto representante da Europa será menor, mas especialmente se a Escócia vier a tornar-se independente. Terceiro, a Europa é, hoje, muito menos marcada pela conflitualidade, particularmente a de natureza militar, e muito mais pela cooperação pacífica assente na integração e prosperidade económica por via do comércio livre, pelo que o Brexit é uma política de sentido contrário não só ao carácter comercial britânico como ao objectivo principal da política externa britânica de impedir a hegemonia de uma potência no continente europeu – ainda que esta se verifique essencialmente por via da economia e não das armas – e acabará por desestabilizar a Europa ao, nas palavras de Robert Kagan, “exacerbar o desequilíbrio de poder e deixar uma França enfraquecida em face de uma poderosa mas cada vez mais isolada Alemanha” e contribuir para a potencial reemergência da questão alemã por “desferir um golpe nas instituições que foram criadas para lidar” com ela.[8] Os britânicos talvez tenham esquecido as palavras de Margaret Thatcher: “A Alemanha é pela sua própria natureza mais uma força desestabilizadora do que estabilizadora na Europa.”[9] Quarto e último, o Brexit é permeado pelo populismo que actualmente constitui uma ameaça interna àquilo a que Michael Doyle se refere como a zona de paz liberal, uma actualização da teoria da paz democrática derivada do ensaio de Kant sobre a paz perpétua,[10] iniciada no séc. XVIII e actualmente composta por cerca de 100 países,[11] em que o Reino Unido é uma peça central, pelo que tem o potencial para contribuir, em conjunto com Donald Trump nos EUA e outros movimentos populistas no continente europeu, para alterações estruturais negativas na ordem internacional liberal que não deixarão de o afectar. Ainda que autores como Daniel Deudney e G. John Ikenberry se mantenham optimistas e considerem que o processo de saída do Reino Unido da União Europeia acaba por revelar a resiliência das instituições da ordem liberal ao tornar evidentes as enormes dificuldades em desfazer os laços e arranjos institucionais desenvolvidos pelos diversos Estados no seu seio,[12] outros, como T. G. Otte, prevêem que a fragmentação do projecto europeu, o cerne da estratégia transatlântica desde o Plano Marshall, tornará a Europa numa fonte de instabilidade.[13]

As relações internacionais são, na actualidade, muito mais complexas que nos séculos anteriores, sendo as interdependências mais densas e aprofundadas, pelo que qualquer pequena perturbação num ponto do sistema internacional pode gerar efeitos noutros pontos ou em todo o sistema. Configurando uma no-win ou lose-lose situation à luz da teoria dos jogos, um processo como o Brexit está fadado a ter impactos assinaláveis e estruturais em que todas as partes sairão prejudicadas, especialmente o próprio Reino Unido que adoptou uma estratégia de alto risco e ganhos potenciais mínimos.[14] Em 1856, Lord Palmerston definia o interesse nacional britânico como “fazer aquilo que nos parece melhor em cada circunstância” e meio século mais tarde Sir Edward Grey reforçava esta formulação imprecisa: “Os ministros dos Negócios Estrangeiros britânicos têm-se guiado por aquilo que lhes parece ser o interesse imediato deste país, sem fazerem cálculos elaborados para o futuro.”[15] O Reino Unido poderá estar prestes a perceber que, no mundo actual, prosseguir interesses imediatos sem grandes cálculos para o futuro comporta custos elevadíssimos. A economia britânica contrair-se-á e a sua influência no mundo desvanecer-se-á.[16] É sempre arriscado efectuar previsões deste tipo e poderemos estar enganados, mas dificilmente o Brexit se saldará em algo mais que uma vitória de Pirro.

[1] Fareed Zakaria, O Mundo Pós-Americano (Lisboa: Gradiva, 2008), 161–65.

[2] David Reynolds, Britannia Overruled (Harlow: Longman, 2000), 309 apud Maria Raquel Freire, ed., Política Externa: As Relações Internacionais em Mudança, 2.a ed. (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015), 296.

[3] Pippa Norris e Ronald Inglehart, Cultural Backlash: Trump, Brexit, and Authoritarian Populism (Cambridge: Cambridge University Press, 2019).

[4] Freire, Política Externa: As Relações Internacionais em Mudança, 278.

[5] Raquel de Caria Patrício, Uma Visão do Projecto Europeu: História, Processos e Dinâmicas (Coimbra: Almedina, 2009), 243–67.

[6] Henry Kissinger, Diplomacia, 2.a ed. (Lisboa: Gradiva, 2002), 45–58.

[7] Kissinger, 74–76.

[8] Robert Kagan, «The New German Question», Foreign Affairs 98, n. 3 (2019): 117.

[9] Margaret Thatcher, The Downing Street Years (London: HarperCollins, 1993), 791 apud Freire, Política Externa: As Relações Internacionais em Mudança, 285.

[10] Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos (Lisboa: Edições 70, 2009).

[11] Steve Smith, Amelia Hadfield, e Tim Dunne, eds., Foreign Policy: Theories, Actors, Cases, 3.a ed. (Oxford: Oxford University Press, 2016), 56–59.

[12] Daniel Deudney e G. John Ikenberry, «Liberal World», Foreign Affairs 97, n. 4 (2018): 22–23.

[13] Robert Jervis et al., eds., Chaos in the Liberal Order: The Trump Presidency and International Politics in the Twenty-First Century (New York: Columbia University Press, 2018), 167.

[14] Jervis et al., 79–80.

[15] Kissinger, Diplomacia, 81.

[16] Deudney e Ikenberry, «Liberal World», 23.

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