Conflito da Crimeia: O Modus Operandi da Federação Russa

Conflito da Crimeia: O Modus Operandi da Federação Russa

Summary: Porque o passado e as circunstâncias explicam as ações presentes – referiu, assertivamente, Ortega Y Gasset que “eu sou eu e as minhas circunstâncias” – importa explicar o que está na origem da anexação da Península da Crimeia por parte da Federação Russa. Assim, no artigo que ora se traça, começa-se por fazer uma abordagem aos fenómenos históricos que transformaram o disputado território e como é que chegou aos dias de hoje, tal como o conhecemos, isto é, a génese histórico-política da Ucrânia. Este ponto levar-nos-á ao porquê da vontade russa em anexar este território, como se desenrolou todo o processo, antes e depois do tão difamado – por parte da Ucrânia e do mundo ocidental – referendo e, naturalmente, as consequências para a Rússia da tomada desta extensão peninsular. 

António Pereira da Silva 

O território que hoje configura a Ucrânia gerou, pelos tempos, várias comunidades, criadoras de Estados embrionários. 

Os primeiros grupos de que há registo de aí estabelecidos, terão sido as citas, antepassados dos sármatas, que posteriormente se fundiram com os eslavos. Tais núcleos humanos, ainda anteriormente à era cristã, criaram comunidades jurídico-políticas de feição agrícola. 

Os gregos, entrando pelo Mar Negro, culturaram os povos locais, criando até cidades. Após eles, persas, romanos, depois os godos (Século III da nossa era) e os hunos (Século V) passaram pelas terras ucranianas, os romanos, principalmente influindo na cultura local (após Teodósio e a divisão do Império, a influência romana proveio do Império Romano do Oriente). 

No século V (d.c.) é formada, nas margens do rio Dniepre, a cidade de Kiev que, dois séculos depois, torna-se uma metrópole de uma unidade política (estendendo-se do Mar Negro, a Sul, ao Báltico, a Norte, aos Cárpatos a Oeste e ao Volga, a leste. 

Por influência de Constantinopla, em 998, converte-se, oficialmente, ao cristianismo, na versão ortodoxa. E o Principado ingressa plenamente na comunidade internacional, desenvolvendo relações diplomáticas, designadamente através de relações de casamento, com várias cortes europeias e Famílias Reais do Império Romano do Oriente. 

Uma série de lutas internas desenvolvidas a partir dos fins do Século XI e, principalmente, a invasão mongólica de Gengis Khan, que toma Kiev em 1240, chefiada por Batu Khan, neto do famigerado chefe Tártaro, fundando o Canato da Horda de Ouro – tendo como território fulcral a Península da Crimeia. 

O que restou do primitivo Principado de Kiev – nomeadamente a sua parte ocidental – veio a configurar o Principado da Galícia-Volínia. E, subsequentemente, veio a cair sob o controlo político da Lituânia – embora o ucraniano se mantivera como língua oficial – gozando Kiev, desde os começos do Século XV, do estatuto de cidade livre (ao estilo de Magdeburgo). E, posteriormente, foi subjugada pela Polónia e pela Hungria. Entretanto, cria-se, a Sul da atual Ucrânia, a República dos Cossacos (vocábulo que, em Turco, significa “homem livre”), independente desde os inícios do século XVII, sob a autoridade de um “Hetman”. 

Em 1654, o Hetman Bogdar Khmelnytsky celebra com a Rússia (ex-Principado da Moscóvia, culturado pelo Principado de Kiev, que lhe transmitiu os ensinamentos do Império Romano do Oriente) o Tratado de Pereslávia (1654), que, conquanto reconhecesse a autonomia interna, exército e língua da hoje Ucrânia, abriu as portas à assimilação política por parte do Império moscovita. 

Uma revolta tentada pelo Hetman Ivan Mazeppa, com o apoio da Suécia, motivou reações russas, cassando o estatuto de autonomia até então, de direito (mas menos de facto) referido. 

No reinado da Grande Catarina (meados do século XVIII), a Rússia conquista os últimos territórios do Canato da Horda de Ouro – o mais importante dos quais era, precisamente, a península da Crimeia – que por então constituía um Protetorado da Porta. 

E face da revolução bolchevista de 1917, a Ucrânia, não aceitando o jugo por ela imposta, declara, em 22 de janeiro de 1918, a sua independência sob a designação de “República Popular da Ucrânia”. Em 1921, tal independência não resistiu às forças russas. 

Episódios dolorosos se passaram sob a batuta da administração soviética. Aproveitando a relativa debilidade da Rússia após o desmembramento da União Soviética, o Parlamento 

ucraniano decide a independência a 16 de junho de 1990, confirmada, em 1991, por um plebiscito votado por mais de 90% da população. Independência reconhecida por Tratado celebrado com a Federação russa, que definia o território ucraniano, no qual se encontrava a Crimeia. 

É neste quadro que a Federação russa – na tradição expansionista da Rússia, czarista ou comunista – motiva o plebiscito que votou a anexação da Crimeia. 

De recordar que, face ao bom recebimento das forças de ocupação alemãs (2a Grande Guerra) pelos habitantes da Crimeia (cossacos na sua maioria), agradecidos por serem libertados do comunismo, Stalin, em 1944, decretou o êxodo dos habitantes locais (uns para o outro mundo, outros para a Sibéria), levando para o território russos de outras paragens. Os votantes do dito plebiscito são, pois, na sua maioria, russos ou filhos de russos. Segundo o censo de 2001, os russos étnicos compõem cerca de 58% dos dois milhões de habitantes da Crimeia, enquanto que os ucranianos compõem 24%, e os tártaros 12%. Este facto explica o resultado do referendo. 

O Processo da Anexação 

Quando pensamos em conflitos, batalhas, guerras ou até invasões territoriais, desenhamos, na nossa mente, uma linha temporal longa. Contudo, a anexação da Península da Crimeia por parte da Federação Russa, não se estendeu por mais de um mês, tendo começado a 23 de Fevereiro de 2014 e acabado a 28 de Março do mesmo ano. 

Depois da rejeição de uma aproximação a nível comercial entre a Ucrânia e a União Europeia, o Presidente Viktor Yanukovych foi derrubado por uma onda de protestos contra o próprio. O ex- Presidente do país foi, ainda, acusado de estar a aproximar a Ucrânia à Rússia, de corrupção e de inúmeras tentativas de alterar a constituição. O processo conhecido por Euromaidan (manifestações por todo o país, com maior foco em Kiev, exigindo uma maior integração europeia), iniciando-se a 21 de Novembro de 2013, terminando com a expulsão do Presidente Yanukovych do seu cargo, a 22 de Fevereiro de 2014, após quatro anos de liderança. Atualmente, encontra-se em exílio na Rússia. Foram 93 dias de intensos conflitos nas ruas, com dezenas de vidas humanas perdidas e vários feridos. 

Como substituto de Yanukovich, assume o cargo de Presidente interino, Oleksandr Turchynov. No seu discurso de apresentação, o novo presidente afirmava que estava disponível para o diálogo com a Rússia, desde que estes respeitassem uma aproximação da Ucrânia à Europa. A opositora de Yanukovych, Yulia Timoshenko, foi presa, em 2011, durante o mandato do primeiro por alegado abuso de poder. Com o fim do Euromaidan, é libertada sendo essa uma das condições do pacto de comércio entre a União europeia e a Ucrânia. 

Quando o Presidente Yanukovych é destituído, o Parlamento assume o poder executivo – a 23 de Fevereiro de 2014 -, ficando como Presidente em exercício Oleksandr Turchynov (nomeado por 285 dos 339 parlamentares) até 25 de Maio este ano que foi o dia de eleições presidenciais na Ucrânia. Uma das primeiras medidas tomadas pelo Presidente foi a revogação da lei sobre as línguas cooficiais das minorias a nível municipal e provincial (aprovada em 2012), causando grande atrito na população do leste do país, constituída, na sua maioria, por russófonos. Como resposta, o Congresso dos deputados regionais do Leste da Ucrânia, reunido na cidade de Jarkov, pediu aos cidadãos destas regiões que se organizassem para combater o Euromaidan, acusando a oposição de não cumprir o acordo ratificado com o anterior presidente ucraniano. 

A 24 de Fevereiro, o prefeito de Sebastopol (como sabemos, uma cidade estratégica da Crimeia) designado por Kiev, é derrubado por manifestantes, colocando um prefeito de 

nacionalidade russa, sendo este o primeiro indício do apoderamento russo da Crimeia. De facto, uns dias mais tarde, era possível verificar o aumento das tensões entre ucranianos e russos, de tal maneira que, Vladimir Putin, manda aumentar as forças do seu país junto à fronteira. 

Na tarde de 26 de Fevereiro – depois das manifestações supra mencionadas – era formado o Governo de Unidade Nacional, sob o comando do antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Arseny Yatseniuk, tendo o Euromaidan como apoiante. Por outro lado, a Rússia oferecia proteção ao antigo presidente Viktor Yanukovich deixando o aviso de que era o verdadeiro Presidente e que a população no Sudeste e no sul da Ucrânia nunca iria aceitar um governo ilegítimo. 

Na manhã do dia 27, forças militares pró-russas, apoderam-se do Parlamento da República Autónoma da Crimeia, assim como edifícios governamentais, hasteando nos mesmos a bandeira da Rússia. Coercivamente ou não, esse mesmo Parlamento anuncia a convocação de um referendo regional para decidir o futuro político do território. Ainda no rescaldo deste acontecimento, forças pró-russas invadem dois aeroportos – um civil e um militar – na Crimeia. Esta situação foi descrita pela Ucrânia como um ato de invasão por parte da Rússia, negado, naturalmente, por Moscovo. 

O dramático cenário leva o Conselho Supremo Ucraniano (Verkhovna Rada) a solicitar uma reunião urgente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O Governo de Unidade Nacional obteve o apoio de vários países ocidentais. 

Já em Março, as críticas internacionais aumentaram ainda mais. Com a aprovação da realização de um referendo, o Presidente Ucraniano afirmou que jamais aceitaria uma decisão de um parlamento inconstitucional (o Parlamento da Crimeia), os E.U.A e a União Europeia condenaram a votação e questionaram sua legitimidade. Um pacote de sanções contra a Rússia foi anunciado. O país soviético, por seu lado, afirmou que se tais sanções fossem implementadas, haveria consequências sérias. 

A 16 de Março foi, então, realizado o referendo. O resultado, como era de esperar, foi de uma vitória esmagadora dos pró-russos. 95% dos habitantes da Crimeia votaram a favor da reintegração do território na Federação Russa (Moura, 2014). Para Vladimir Putin foi um dia de apoteose, como que o início da cura do trauma do fim da União Soviética. “A Crimeia e Sebastopol regressam ao porto de partida, à praia de origem, à Rússia!”, afirmou o Presidente Russo, acrescentando que as criticas internacionais não faziam sentido já que, “no coração e na consciência de todos, a Crimeia sempre foi e continua a ser uma parte inseparável da Rússia”, para além de que o referendo decorreu “em total acordo com os procedimentos democráticos e com as normas legais internacionais”, como noticiou o Jornal Público. 

Tendo como signatários a Federação Russa e a República da Crimeia, a 18 de Março de 2014 é assinado o Tratado da Adesão da Crimeia e Sebastopol à Federação Russa, passando a República da Crimeia e a Cidade de Sebastopol a ser duas subdivisões federais. Nesse mesmo dia, uma milícia pró-russa invade uma base militar perto da capital da Crimeia, matando um soldado ucraniano e um membro da defesa da Crimeia e aprisionando outros vinte soldados do país ucraniano. Esta situação levou Kiev a autorizar os seus soldados a usarem as armas de fogo para se defenderem das forças pró-russas. Contudo, de pouco ou nada serviu. A 24 de Março, tropas russas tomaram uma importante base naval em Feodosia e, perante a ameaça crescente, o Presidente interino da Ucrânia manda retirar as suas tropas da Crimeia. É nesse dia, também, que o rublo passa a circular oficialmente como moeda da Crimeia. 

Estavam, assim, dados os passos para o fim da pertença à Ucrânia da península da Crimeia. S. Finner define 5 características de um Estado: São populações territorialmente definidas, 

reconhecendo um supremo órgão de governo; Este órgão de governo é servido por uma função pública para concretizar decisões, e um serviço militar para o garantir pela força, se necessário, e proteger a associação de outras similarmente constituídas; o estado deve ser detentor de uma soberania, isto é, o Estado é reconhecido por outros estados como independente na sua ação sobre os seus súbditos (a sua população); idealmente, a população do estado forma uma comunidade de sentimento, baseada na autoconsciência de uma comum nacionalidade; a existência de taxas e benefícios distribuídos e partilhados pelos membros da comunidade. Conquanto do último caso não se discute, é certo que a Ucrânia tinha perdido os 4 primeiros pontos no que respeitava à República Autónoma da Crimeia. 

Certo é que, terminado todo o processo de anexação territorial, a Ucrânia não aceitava a situação e lança um decreto em que considera o território da península da Crimeia como “zona ocupada” pela Rússia, impondo restrições às viagens ao território. 

Naturalmente que as reações internacionais foram de uma condenação assertiva à atitude russa. Para além das sanções impostas pela União Europeia e Estados Unidos, a 27 de Março foi adotada a Resolução A/RES/68/262 da Assembleia Geral da ONU, onde, para além da negação da validade do passado referendo, é pedido aos Estados e Organizações Internacionais para não mudarem em nada no que respeita ao status da Crimeia ou da cidade portuária de Sebastopol no Mar Negro e abster-se de ações ou acordos que possam ser interpretados como tal. Também a NATO (historicamente, não muito favorável aos soviéticos) lembrou a Rússia – por intermédio do Secretário Geral – de que esta tinha obrigações estipuladas pela Carta das Nações Unidas, o Memorando de Budapeste de 1994, o Tratado de Amizade e Cooperação de 1997 entre o seu país e a Ucrânia. Enfim, por mais avisos feitos, a situação manteve-se até aos dias de hoje. 

À luz do Direito Internacional, a Rússia agiu e continua a agir ilegalmente. As sanções europeias e americanas mantêm-se, pelo menos até junho de 2020. No entanto, apesar de condenações e sanções, a Rússia mantém o território da Crimeia sob a sua posse e manterá. Não é o primeiro nem será, certamente, o último caso em que um país poderoso faz o que beneficia o seu Estado em detrimento das leis internacionais. A Rússia, sedenta de se levantar da “vergonha” da queda da União Soviética, somada à sua veia expansionista secular, toma passos que estão de acordo com o que pretende e, apesar de amplamente contrariada e ameaçada, anexou a Península e ninguém pôde fazer nada. Cientes dos perigos de uma guerra no século XXI, os países não se atreveram a atacar um país como a Rússia, apenas por causa de um território. 

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